Resposta: Migrânea com aura, letra B
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Estruturação para raciocínio diagnóstico:
ID: M.F., feminino, 28 anos.
QP: “Coração batendo na cabeça”.
HDA: A paciente relata que a dor é unilateral e progressiva que dura por algumas horas. Relata que percebe essa dor associada a uma visão turva em ambos os olhos com pequenos pontos brilhantes que aparecem e desaparecem, que melhoram após a crise. Quando a dor está muito forte chega a ter náuseas, não chega a vomitar e não consegue ir trabalhar. Suas crises geralmente possuem a duração de até 2 dias.
A princípio, para tratar usa Dipirona Sódica 500mg/ml 50 gotas de 6/6h com pouco alívio. Relata que ao dormir a dor fica melhor, apesar de perceber pouca diferença da dor ao ficar de pé ou deitada. Nega mudança no padrão da dor ao movimentar a cabeça, deitar-se. Já teve diversos episódios parecidos, acha que aproximadamente desde seus 18, 20 anos. Acredita que a dor não tem hora para surgir, já teve crises no início da manhã depois que acordou e no fim da tarde também. Relata que percebe que a dor piora muito ao ficar em locais claros e percebe um certo alívio em locais escuros.
IS: Nega outros acometimentos.
HP: Nega histórico de internações, cirurgias prévias. Usa DIU há 2 anos. Fluxos menstruais regulares a cada 28 dias, com fluxo aumentado por 3 dias e cessação do sangramento no quinto dia. Data da última menstruação: 15 dias antes da consulta.
Exame físico:
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A paciente apresenta exame físico dos Sistemas Respiratório, Cardiovascular e Digestório sem alterações
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PA: 120x80mmHg; FC: 60bpm; FR: 16 irpm; SatO2: 98%
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Peso: 55 kg; Estatura: 158 cm; IMC: 22
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Exame neurológico sumário foi considerado normal, inclusive na testagem de força muscular de bíceps, tríceps, extensores do punho, interósseos, iliopsoas, isquiotibiais, dorsiflexão do pé.
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Resolução do caso:
Diagnóstico: Migrânea com aura
Epidemiologia: É um dos sintomas mais frequentes no departamento de emergência (2 a 4% das queixas). Cerca de 70% das pessoas apresentaram o sintoma durante o ano. Afeta mais mulheres do que homens (20% contra 5-10%). 95% dos casos são benignos. Apresenta mais dificuldade de classificação etiológica causa elevados erros diagnósticos
Clínica: Existem 254 cefaleias catalogadas segundo a CIC 3ªed, sendo que podem ser divididas em primárias e secundárias:
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Primárias: o sintoma principal são episódios recorrente de dor de cabeça, sendo desordens neuroquímicas sem evidências anatômicas. Ex: migrânea, cefaleia do tipo tensional e cefaleia em salvas (trigeminoautonômicas).
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Secundárias: São sintomas de uma doença subjacente, neurológica ou sistêmicas, sendo alguma agressão aos organismos. Ex: traumas, meningite, dengue, tumores, infecção, entre outros. Aqui é importante ressaltar a necessidade de um diagnóstico diferencial entre primária e secundárias, pois, geralmente, as causas secundárias iram exigir exames complementares.
1. Migrânea (enxaqueca comum e enxaqueca clássica): No Brasil, a prevalência é de 15.8%, acometendo mais as mulheres, com um pico entre 30 e 50 anos, sendo que 75% sem aura e 25% com aura. Cerca de 80% dos pacientes tem algum familiar direto acometido.
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Sintomas premonitórios: podem preceder a cefaleia por horas ou dias. O paciente apresenta irritabilidade, raciocínio e memorização mais lentos, desanimo e aversão a alguns alimentos.
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Sem aura: enxaqueca comum, recorrente manifestando em crises de 4-72hrs, hemicraniana, pulsátil, intensidade moderada ou forte, intensificada por atividade física, associada a náuseas e/ou fotofobia e fonofobia. Ao menos 5 crises com 4-72hrs com náusea e/ou vômitos ou fotofobia e fonofobia.
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Com aura: Enxaqueca clássica, com duração de minutos, sintomas unilaterais visuais, sensoriais ou outros sintomas oriundos do SNC, que geralmente se desenvolvem e são habitualmente seguidos por cefaleia. Apresentar aura e ao menos três das seguintes características: um dos sintomas de aura alastra-se gradualmente por mais de 5min, dois sintomas de aura ocorrem em sequência, cada sintoma de aura dura de 5-60min, ao menos 1 sintoma de aura positivo ou aura acompanhada ou seguida por cefaleia dentro dos 60min.
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Crônica: aumento das frequências de crises até tornarem-se diárias ou quase diárias (15 ou mais dias/mês por mais de 3 meses, sendo ao menos 8dias/mês de crise migranosa)
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Complicações: O estado migranoso é a cefaleia intensa que dura mais de 72 horas precisando de uma intervenção médica imediata, com intervalos livres inferiores a 12 horas, com náuseas e vômitos associados que levam a desidratação e necessidade de internação.
2. Tipo Tensional: é a mais frequentes das cefaleias primárias, com prevalência na quarta década de vida. Sua crise é fraca ou moderada, com sensação de aperto ou pressão e, na maioria das vezes, bilateral. Pode ser frontal, occipital ou holocraniana (em faixa). Além disso, apresenta melhora com atividade físicas e tem a tendência a surgir no final da tarde relacionando-se com estresse físico, muscular ou emocional. Atualmente é dividida em: episódica frequente, episódica infrequente e crônica.
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Episódica frequente: Episódios frequentes tipicamente bilateral em aperto ou pressão, de intensidade leve a moderada, durando de minutos a dias. A dor não apresenta piora com atividades, sem náuseas associadas, podendo apresentar fotofobia ou fonofobia. Ao menos 10 episódios de 1-14 dias/mês por mais de 3 meses, com duração de 30 min a 7 dias. (NÃO PULSATIL).
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Episódica infrequente: Episódios infrequentes de cefaleia bilateral em aperto ou pressão e intensidade fraca a moderada. Pode durar minutos ou dias sem associação a náuseas, vômitos e podendo apresentar fotofobia e fonofobia. Ao menos 10 episódios em menos de 1dia/mês.
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Crônica: Transtorno que evolui a partir da cefaleia episódica frequente, com episódios diários frequentes de dor bilateral em pressão ou aperto e de intensidade leve a moderada. Pode durar por horas ou dias sem remissão. Ao menos 15 dias/mês por mais de 3 meses com nada mais que fotofobia, fonofobia ou náuseas leves.
3. Cefaleias trigeminoautonômicas (CTAs): Afeta mais pessoas do sexo masculino, geralmente após os 20 anos, mas é mais frequente entre as 3ª e 5ª décadas de vida. A doença possui uma evolução dos surtos de 1 a 3 meses de duração e paciente acabe tendo cada vez mais frequente (1 a 8 crises por dia) podendo ser despertado à noite pela crise. Geralmente a crise são limitadas 15-180min, com dor excruciante, unilateral e alterações autonômicas (hiperemia conjuntival, lacrimejamento, congestão nasal, congestão ocular, rinorreia, edema palpebral, rubor facial, miose e/ ou ptose ipslaterais) associadas a sensações de inquietude/agitação. Após episódios de salvas pode haver meses ou anos sem crise. Tem início a noite ou 1-2 horas após dormir. Característica: Fáceis de Grahamà pele casca de laranja, queijo quadrado, fácies de fumo/álcool.Algumas outras que se enquadram no padrão de trigeminoautonômicas: hemicraniana paroxística
4. Cefaleias Secundárias: Aqui entra o ponto principal em saber diferenciá-las muito bem, pois alguns tipos de cefaleias secundárias, por estarem associadas a outros problemas, podem levar a morte. Para a diferenciação podemos utilizar os RED FLAGS (SSNOOP4):
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Sintomas sistêmicos: febre, erupções cutâneas, fadiga, perda de peso, rigidez de nuca, mudança de personalidade. Pode se relacionados a arterites, doenças cardiovasculares, encefalite, inflamação, meningite.
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Riscos Secundários: HIV, câncer, Síndrome de Lyme, trauma.
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Sinais Neurológicos: déficit neurológico, sem orientação no espaço, confuso. Podem indicar AVC, hemorragias cranianas, infecções no SNC...
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De repente ou abrupto (Onset is new): início repentino da pior dor de cabeça já sentida pelo paciente. Hemorragia subaracnóidea. Início da cefaleia novo particularmente após os 40 anos.
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Outras características ou condições associadas (Ex.: trauma craniano, uso de drogas ilícitas, ou exposição a substância tóxica; cefaleia que desperta do sono, cefaleia piorada com manobra de Valsalva, ou cefaleia precipitada por tosse, por esforço, ou por atividade sexual.
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História Prévia de cefaleia com a dor em progressão ou mudança no ataque quanto a frequência, gravidade ou características clínicas.
Exemplos:
Hemorragia subaracnóidea: Apresenta um início explosivo com dor severa holocraniana, sem melhora com analgésicos e com sinais neurológicos presentes.
Artrite de células gigantes: Acomete principalmente idosos na artéria temporal, os sintomas variam de dor de cabeça, dor na mandíbula, perda da visão, febre e fadiga. VHS aumentado.
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Sobre o caso:
Um dos momentos importantes na abordagem da cefaleia na Atenção Básica (AB) é definir se aquele caso necessita de ser tratado com urgência, por se tratar de uma condição grave. Por isso, o médico de AB deve conhecer e reconhecer prontamente esses sinais de alerta para o devido manejo do caso. Foi sugerido o termo em inglês Red Flags, que ajuda o profissional a identificar tais situações que devam ser conduzidas prontamente por serem potencialmente condições sérias de dor de cabeça aguda. Nos casos, portanto, de presença de algum desses critérios devem ser encaminhados para maior investigação como exames de imagem, punção lombar, entre outros exames. No caso em questão, a paciente não preenche critérios para sinais de alarme para cefaleia. Portanto, o ato de solicitar o exame de Tomografia Computadorizada ou outros exames complementares pode atrasar o tratamento adequado dessa paciente, como também, expô-la a radiação de forma desnecessária, sendo que o risco de alguma condição neurológica mais grave é baixa. Na abordagem da cefaleia, associado a febre e sinais meníngeos um diagnóstico que deve ser excluído é a meningite, por exemplo. Nesses casos a punção lombar é muito usada. Diante disso, M.F. apresenta uma cefaleia primária do tipo migrânea com aura, visto que a paciente manifesta sintomas sensoriais, como escotomas e fotofobia. Os critérios para o diagnóstico são:
A. Ao menos duas crises preenchendo os critérios B e C.
B. Um ou mais dos seguintes sintomas de aura plenamente reversíveis: visual; sensorial; fala e/ou linguagem; motor; tronco cerebral; retiniano.
C. Ao menos três das seis seguintes características: ao menos um sintoma de aura alastra-se gradualmente por ≥ 5 minutos; dois ou mais sintomas de aura ocorrem em sucessão; cada sintoma de aura individual dura 5-60 minutos; ao menos um sintoma de aura é unilateral; ao menos um sintoma de aura é positivo; a aura é acompanhada, ou seguida dentro de 60 minutos, por cefaleia. * Duração da aura: 15-45 minutos (a duração difere dos sintomas de uma Ataque Isquêmico Transitório, que possuem duração máxima de 15 min, logo pode servir para diagnóstico diferencial em pacientes de risco - idosos; hipertensos; diabéticos.
D. Não é melhor explicada por outro diagnóstico da ICHD-3 (The International Classification of Headache Disorders).
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Tratamento:
Para o tratamento da crise no PA: medicação EV - glicose a 25%; 2 ml Dipirona (analgésico); 1 ml Plasil (antiemético); Dexametasona (anti-inflamatório -> reduzir a inflamação neurogênica). *Não dar para o enxaquecoso com crise: Morfina; Tramadol ou Codeína; pois não surtirá efeito. *Evitar administração de barbitúricos. Outra opção - Triptano (Oral /Subcutâneo / Nasal). Quando nada funciona na enxaqueca - ⅓ de 1 ampola de Amplictil EV (medicação de resgate), deve ser administrada com o paciente deitado.
As indicações para a terapia preventiva da migrânea são crises frequentes ou de duração muito longa; e crises que causam perda de qualidade de vida com impacto na vida da paciente. Em crises incomuns de migrânea como migrânea hemiplégica, migrânea de aura de tronco cerebral e migrânea de aura prolongada, o tratamento preventivo é indicado para reduzir o risco de dano neurológico.
As medidas efetivas não farmacológicas incluem higiene do sono, refeições regulares e respeitando uma rotina, exercícios físicos regulares principalmente exercícios aeróbicos, técnicas de relaxamento, terapia cognitivo-comportamental, acupuntura, estimulação nervosa elétrica transcutânea e a identificação e manejo dos possíveis gatilhos das crises. Essas medidas devem ser reforçadas em todos os pacientes com migrânea.
Para o tratamento farmacológico, deve-se individualizar as preferências e perfis de cada paciente, levando em conta aspectos como doenças pré-existentes como hipertensão, transtornos do humor, epilepsia. A indicação deve ser uma entre as 3 classes.
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Principais medicações utilizadas no tratamento preventivo da migrânea:
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Beta bloqueadores: Metoprolol, Propranolol, Atenolol.
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Antidepressivos: Amitriptilina e Venlafaxina.
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Anticonvulsivantes: Valproato e Topiramato.
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Fármacos de escolha:
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B-bloqueador: Propanolol (80 mg/dia), mais utilizado; Atenolol; Timolol (50 mg/dia).
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Bloqueador de canal de Ca2+: Flunarizina (10 mg/noite), nome comercial Vertix - medicamento originalmente para vertigem.
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Anticonvulsivante: Topiramato (100 mg/noite) - melhor opção para mulheres, e, além disso, “emagrece”. Já o Depakote (ácido valpróico), outro anticonvulsivante, “engorda”.
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Divalproato de sódio ER (500 - 1500 mg/dia).
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Antidepressivo Tricíclico: Amitriptilina (10 – 75 mg/dia), excelente medicamento para jovens - não recomendado para idosos pois pode levar ao desenvolvimento de catarata, glaucoma, confusão mental, constipação.
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Inibidores duais (5 HT e nora): Venlafaxina.
De forma geral, as medicações passam a fazer efeito depois de 4 semanas de uso e tem efeito gradativo na melhora sentido por 3 meses. A medicação é usualmente iniciada com doses baixas e aumentada gradualmente até atingir o benefício desejado ou efeitos adversos intoleráveis. Na ausência de melhora com a medicação, recomenda-se trocar de classe na tentativa de controle.
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Referências:
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Sociedade Brasileira de Cefaleia. Tratamento das crises, 2012. Acesso em: https://sbcefaleia.com.br/noticias.php?id=195
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GOLDMAN, Lee; AUSIELLO, Dennis. Cecil Medicina Interna. 24. ed. Saunders-Elsevier, 2012.
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Classificação Internacional de Cefaleias 3ª edição (2018). Acesso em: https://ichd-3.org/wp-content/uploads/2019/06/ICHD-3-Brazilian-Portuguese-translation-25062019.pdf
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UNA-SUS. Atenção aos problemas neurológicos frequentes na atenção básica, 2020. Acesso em: https://www.unasus.gov.br/cursos/curso/46023